Marlon Villas
(Fonte: http://www.adrigomes.com) |
Você já pensou alguma vez em como a nossa visão atual de mundo, a respeito de ciência, filosofia, até mesmo de política e de economia, foi moldada? Será que foi simplesmente uma evolução natural das variáveis do comportamento e do conhecimento humanos ao longo dos séculos e milênios? Ou essa visão terá sido impulsionada — melhor dizendo, rápida e radicalmente modificada — por conta de um poema antes dado como perdido para sempre?
A última hipótese parece, nesses termos, ser a mais improvável, porém é o que o livro A Virada — O Nascimento do Mundo Moderno, de Stephen Greenblatt, busca demonstrar, de acordo com uma pesquisa imensa feita pelo autor em cima de fatos históricos.
Poggio Bracciolini era um sujeito de família de pouca renda, que nasceu na Itália no ano de 1380. Com o passar do tempo foi se especializando em algo que, para quem não possuía um título de nobreza na família, como era o seu caso, poderia ser a saída, embora não garantida, para um futuro melhor: tornou-se um escriba, aquele que copia manuscritos e livros, já que ainda naquela época a imprensa de Gutenberg não havia sido inventada. Poggio acabou sendo aluno de alguns humanistas (homens que buscavam o conhecimento em obras clássicas da humanidade), e adquiriu uma vasta cultura sobre textos antigos latinos e gregos, principalmente.
Quando havia alcançado a vida adulta, conseguiu um lugar como escriba ao lado de alguns bispos, até que finalmente, para um homem de sua posição social, alcançou o máximo posto de sua carreira como secretário apostólico no Vaticano, trabalhando bem próximo de alguns papas.
Até que, no início do século XV, com a queda do papa João XXIII (cujo nome de batismo era
Baldassare Costa, um homem que terminou sendo acusado por dezenas de crimes — após sua destituição do mais alto cargo da igreja católica, o nome João XXIII ficou novamente disponível, e somente foi reutilizado no século XX por Giuseppe Roncalli, ao ser eleito em 1958), Poggio se viu de repente sem trabalho que lhe garantisse uma renda. Entretanto, já era obcecado por algo que muitos humanistas praticavam, que era a busca e descoberta de textos antigos e raros, como poemas, tratados filosóficos, cartas, qualquer escrito que demonstrasse algo que pudesse ser visto como relevante para a história humana.
Retrato de Poggio com quase 70 anos. (Fonte: http://mhoefert.blogspot.com.br) |
Segundo fontes de pesquisa de Greenblatt, Poggio provavelmente (isso até hoje nunca foi muito bem esclarecido) adentrou o mosteiro de Fulda, no sul da Alemanha, em 1417, e lá encontrou o que seria um pergaminho de um antigo poeta chamado Tito Lucrécio Caro, que viveu algumas décadas antes do nascimento de Cristo. Hoje tal obra, intitulada em latim De Rerum Natura, ou traduzida como Da Natureza das Coisas, é considerada uma obra-prima do pensamento ocidental, e várias pistas indicam que foi a partir da disseminação deste poema (em parte) que a Idade Média foi dando lugar à Renascença, com sua influência sendo plantada por diversas áreas da criatividade humana, como ciência, filosofia e literatura, até mesmo pintura e escultura. Alguns nomes famosos da História ocidental teriam claramente tido contato com De Rerum Natura de Lucrécio, como Giordano Bruno, Nicolau Maquiavel, Galileu Galilei, Thomas Jefferson, Isaac Newton, Pierre Gassendi, Molière, Thomas More, William Shakespeare, Montaigne, entre muitos outros que, atualmente, são referências como grandes pensadores e realizadores do conhecimento.
A seguir, você tem listados (como está no livro A Virada) os pensamentos fundamentais da obra de Lucrécio, dispersos por 7400 versos :
- Tudo é composto de partículas invisíveis.
- As partículas elementares da matéria — “as sementes das coisas” — são eternas.
- As partículas elementares são de número infinito, mas limitadas em forma e tamanho.
- Todas as partículas estão em movimento num vazio infinito.
- O universo não tem um criador ou um projetista.
- Tudo vem a ser por resultado de uma virada.
- A virada é a fonte do livre-arbírtrio.
- A natureza experimenta incessantemente.
- O universo não foi criado para os ou em torno dos humanos.
- Os seres humanos não são únicos.
- A sociedade humana começou não com uma era dourada de tranquilidade e abundância, mas com uma batalha primitiva pela sobrevivência.
- A alma morre.
- Não há vida após a morte.
- A morte não é nada para nós.
- Todas as religiões organizadas são ilusões supersticiosas.
- As religiões são invariavelmente cruéis.
- Não existem anjos, demônios nem fantasmas.
- O objetivo mais elevado da vida humana é a ampliação do prazer e a redução da dor.
- O maior obstáculo ao prazer não é a dor; é a ilusão.
- Compreender a natureza das coisas gera um profundo embevecimento.
Uma das primeiras cópias impressas de Lucrécio. (Fonte: http://blogs.law.harvard.edu) |
Reconhece algo familiar em tudo isso? Não parece que muitas dessas afirmações são bastante comuns a nós hoje em dia? Percebe como muitas dessas mesmas afirmações eram extremamente radicais, consideradas inclusive heréticas pela Igreja, que controlava boa parte das sociedades naquele tempo, constituindo uma ameaça seriíssima a seus dogmas? Galileu, por exemplo, foi condenado por heresia, mas escapou da morte pela Inquisição por influência de alguns colegas. Giordano Bruno era um monge que não teve tanta sorte: acabou queimado perto da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Hoje existe uma estátua em sua homenagem exatamente no lugar onde ele foi executado.
Será tão estranho que um poeta grego vivido antes da era cristã tivesse tamanho discernimento acerca de todas as coisas? Na verdade, se você pensar que ele próprio, Lucrécio, foi influenciado por Epicuro e por Demócrito, dois filósofos que, segundo fontes históricas, deram origem ao atomismo e a como conhecemos hoje a estrutura da matéria, ao menos em termos gerais, não parece algo tão incomum.
Um manuscrito de Lucrécio. (Fonte: http://commons.wikimedia.org) |
A lista acima é bem explicada durante a leitura de A Virada, mais precisamente no capítulo 8, com o título Como As Coisas São. Só sei que hoje não consigo mais pensar na história moderna como pensava antes. Preciso achar este poema de Lucrécio, senão não vou conseguir dormir em paz outra vez algum dia. É algo que diz respeito basicamente a todos nós, cada pessoa que vive neste planetinha azul e que segue sua vida de acordo com certos preceitos de vida, sejam eles científicos, religiosos ou qualquer outra definição que você queira.
Ou talvez seja só empolgação da minha parte.
Título: A Virada – O nascimento do mundo moderno (tradução brasileira) /
The Swerve: How the world became modern (original)
Autor: Stephen Greenblatt
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 294
Que coisa bacana, cara!
ResponderExcluirMuito interessante mesmo.
Estes pensamentos fundamentais do Lucrécio são incríveis!